Parece-me que, nem sempre, as celebrações da Igreja recebem a atenção que merecem. Isso se dá pelo fato de estabelecermos uma compreensão equivocada sobre seu lugar no edifício da vida cristã. Por essa razão, veio-me a pergunta – já feita e respondida pelo Concílio Vaticano II – sobre a finalidade da Liturgia. Muitas vezes tenho a impressão que a Liturgia é assumida como um “anexo” à vida do fiel – e não raro de seus pastores mais próximos: nós, os presbíteros. Mais que isso, uma espécie de “acréscimo” ao próprio Mistério Pascal. Essa percepção me é confirmada quando percebo, por exemplo, o descuido com o Ano Litúrgico no percurso pedagógico da vida cristã. Também quando se verifica um desequilíbrio enorme entre os tipos de celebração que uma comunidade possui em relação à riqueza de possibilidades ofertada pela Igreja: em muitos lugares, só se tem missa e mais missas. Outras expressões da fé e da vida cristã permanecem intocadas, uma vez que as formas rituais para as abraçar não são levadas em consideração. Também – antes que me esqueça – ao verificar uma comunidade cristã sem uma equipe que se reúna para rezar, preparar-se e preparar suas celebrações periodicamente – sobretudo a liturgia dominical – fica mais patente ainda o desdém.
Chego à conclusão que este contexto tem a ver com a falta de clareza daquilo que concerne à Liturgia da Igreja. Com o intuito de oferecer uma reflexão que responda ao menos satisfatoriamente à indagação sobre a finalidade da Liturgia, proponho começar com uma afirmação tirada da ortodoxia católica. O Catecismo da Igreja Católica, ao apresentar de modo sistemático a doutrina da fé, aborda “A celebração do Mistério cristão” na segunda parte. A primeira questão com a qual nos deparamos é “Por que a Liturgia”. A resposta oferecida pelo magistério toma por referência o texto da Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium. Dela, cita os números dois e cinco para dizer que, ao celebrar, a Igreja experimenta e exprime a obra de Cristo. Um pouco mais à frente, fornece um breve estudo etimológico da palavra liturgia, afirmando que “na tradição cristã, ela quer significar que o Povo de Deus toma parte na “obra de Deus”. O número seguinte deixa evidente que esta obra não diz respeito apenas à celebração do culto divino, mas também ao anúncio do Evangelho e os atos de caridade. Sobre esta acepção cita respectivamente, dentre outros textos sugeridos, Fl 2, 17 – “serviço da fé” (leitourgía tês písteuos) – e 2Cor 9,12 – “serviço desta coleta” (diakonia tês leitourgías). O primeiro texto se refere ao anúncio da obra de Cristo como narração existencial do evangelho pois “é Deus quem opera” quando sua vontade é conhecida, acolhida e respeitada. O trecho da segunda Carta aos Coríntios trata da generosidade dos fieis chamados a contribuir para o sustento da comunidade. Nos dois casos, a palavra “liturgia” (leitourgía) é empregada em referência às obras da comunidade cristã (evangelização e caridade) como desdobramento ou prolongamento da obra de Cristo.
Partindo destas memórias dos textos escriturísticos, passemos à era patrística. A Liturgia, na antiguidade cristã, era concebida sobretudo como culto espiritual. Em linhas gerais significa “sentir-se chamados a ser eles mesmos (os cristãos) proclamação de louvor do amor de Deus, que desde a eternidade os escolhera para a santidade em Cristo.” Sem negar a importância da prática ritual e sua exterioridade, o acento está na dimensão interior da celebração do Mistério Pascal de Cristo. A Epístola de Barnabé se pronuncia claramente a este respeito: “Deus revogo os antigos sacrifícios, para que a nova lei de nosso Senhor Jesus Cristo, que não está submetida ao jugo da fatalidade, tivesse uma oblação que não é feita pela mãos dos homens. Por isso lhe diz noutro lugar: ‘Porventura ordenei Eu aos vossos pais, quando saíram da terra do Egito, que Me oferecessem holocaustos e sacrifícios?’ Esta foi a ordem que lhe dei: ‘Nenhum de vós guarde rancor em seu coração contra o seu próximo; e não ameis o falso juramento.’”
Como se pode ver, as celebrações litúrgicas são compreendidas a partir de sua dinâmica teologal, como Opus Dei acontecendo mediante os ritos da Igreja. E a obra máxima de Deus é seu amor derramado em nossos corações pelo Espírito de Cristo. Em seu “O mistério do culto no cristianismo”, Odo Casel afirma categoricamente: “Por sua divina paixão, o Cristo tornou-se Pneuma, isto é, sua própria humanidade foi transfigurada por sua divindade. Ele tornou-se o Senhor, o Kyrios glorificado e celeste, o Soberano Sacerdote, o dispensador do Espírito e, assim, a Cabeça de sua Igreja (…). Este itinerário de Salvação nós também devemos seguir, mas em Cristo. (…) Devemos tomar parte na obra redentora de Cristo de maneira viva e ativa, parte que será passiva naquilo que o Senhor age em nós, mas também realmente ativa quando a ela nos associamos por uma ação.” Estas ações, nas quais tomamos parte e que são, simbolicamente, itinerário para participarmos da obra de Deus são os ritos litúrgicos.
Piero Marini escreve que “só se pode fazer experiência do Mistério mediante o rito”. Essa chave de interpretação oferecida por Marini não é exclusiva, pois a experiência do Deus de Jesus se faz também e sobretudo na existência cristã. Mas a vida cristã é prolongamento e desdobramento do culto. O rito, assumido não apenas como estrutura antropológica, mas como linguagem do Mistério, ancorado no evento da encarnação, é responsável por qualificar a experiência religiosa transfigurando-a em participação no Reinado de Deus, em um fato de comunhão. Dom Marmion dizia que “a comunhão nos dá em substância todo os estados da vida de Jesus, com suas propriedades, seu espírito peculiar, seus méritos, suas virtudes. Por detrás desta diversidade de estados e de mistérios, se perpetua a pessoa mesma que os viveu e atualmente vive para sempre no céu.” São Leão Magno, no século V, falava algo parecido: o que antes era encontrado em nosso Salvador, o experimentamos agora ao celebrarmos (em seus mistérios). Assim, a ritualidade oferece à vida uma espécie de qualidade sacramental e mistérica, pela qual a existência cristã se torna símbolo da vida de Cristo e ao mesmo tempo oportunidade permanente de introdução no Reino de Deus mediante a essa mesma presença do Cristo em nós.
Por Pe. Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
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