A Província Carmelitana de Santo Elias apresenta o especial “O Decálogo da Esperança”, artigo escrito por Frei Carlos Mesters, O.Carm., que traz uma reflexão sobre os cativeiros da Babilônia e da Covid-19. Dividido em três capítulos, o texto recorda como foi o cativeiro do povo de Deus na Babilônia e o que eles fizeram para encontrar a saída. Fazendo um paralelo com os dias de hoje, o autor nos convida a enfrentar com mais esperança este nosso cativeiro da pandemia do novo coronavírus. Leia o segundo capítulo: Dez janelas para ver de perto a recuperação da esperança.
Da Escuridão para a Luz
Dez janelas para ver de perto a recuperação da esperança
Vamos ver como naquele terrível cativeiro da Babilônia renasceu a esperança que fez aparecer um novo caminho. Vamos ver dez pontos que marcaram o renascer do povo. Não se trata de uma sequência cronológica. Trata-se de dez janelas que permitem ver como a esperança renasceu naquela escuridão. Quem sabe, nós olhando pelas mesmas dez janelas para o cativeiro do coronavírus, possamos nós também descobrir uma saída segura e confiável.
1ª Janela: Descobrir a luz que já existe na escuridão do cativeiro
Todos nós, em momentos difíceis de escuridão, costumamos dizer: “Existe luz no fim do túnel”. Este modo de falar supõe que dentro do túnel não existe luz. No túnel só existe escuridão. Na época do cativeiro da Babilônia, porém, a luz que começou a reanimar a esperança do povo não era a luz do fim do túnel, mas sim uma luz que já existia dentro do túnel. A Terceira Lamentação ajuda a perceber a luz. Vejamos:
A Lamentação começa com este desabafo: “Eu sou o homem que conheceu a dor de perto, sob o chicote da sua ira. Ele [Deus] me conduziu e me fez andar nas trevas e não na luz” (Lm 3,1-2). A primeira palavra é EU: “Eu sou o homem que conheceu a dor de perto!” Mas a dor o isolou e ele se fechou dentro do seu próprio EU e trata a Deus não como tu, mas como ELE: “Ele me fez andar nas trevas!” Os dois estão de relações rompidas. Deus aparece como um poder agressivo, sem nome. Nos primeiros dezoito versículos, a lamentação usa imagens terríveis para descrever o castigo que o povo recebe de Deus e, no fim, o autor tira esta conclusão: “Eu digo: acabaram-se minhas forças e minha esperança em Yhwh” (Lm 3,18). Deus, lá! Eu, aqui! Sem nenhum contato entre os dois. Acabou-se a esperança. É o fim! Assim parecia…
A última palavra deste longo e violento desabafo contra Deus é o nome Yhwh, as quatro letras do Nome de Deus. E de repente, sem previsão nenhuma, a simples lembrança quase casual deste Nome faz aparecer uma luz na escuridão. Na mesma hora, o autor muda de atitude, começa a conversar com Deus e diz: “Lembra-te de minha miséria e sofrimento, o fel que me envenena” (Lm 3,19). Fora dele e ao redor dele, nada mudou! A escuridão continua do mesmo jeito: miséria, sofrimento, fel, veneno! Ele estava de relações rompidas com Deus, sem nenhum contato. E de repente o Deus distante, que o esmagava e que envenenava tudo, é invocado como TU: “Lembra-te de mim!” Esta é a luz que, de repente, apareceu na escuridão. O que foi que provocou a mudança?
Retomando o lamento a partir dos versículos 17 a 18, veja como o autor continua a sua prece a Deus e como, de repente, muda todo o seu modo de rezar:
17 Fugiu a paz do meu espírito, a felicidade acabou.
18 Eu digo: Acabaram minhas forças e minha esperança em Yhwh.
19 Lembra-te de minha miséria e sofrimento, o fel que me envenena.
20 Guardo triste essa lembrança e me sinto abatido.
21 Mas existe alguma coisa que eu lembro e me dá esperança:
22 o amor de Yhwh não acaba jamais e sua compaixão não tem fim.
23 Pelo contrário, renovam-se a cada manhã: “Como é grande a tua fidelidade!”
24 Digo a mim mesmo: “Yhwh é minha herança”, por isso nele espero.
25 Yhwh é bom para os que nele esperam e o procuram.
26 É bom esperar em silêncio a salvação de Yhwh” (Lm 3,17-26).
A luz da esperança que aqui transparece não é a luz do fim do túnel. É uma luz diferente, que já existia dentro do próprio túnel, dentro deles mesmos, e eles não tinham consciência disso. Mas de repente, os olhos se abriram e aquilo que parecia ser a ausência de Deus tornou-se a sua presença. Escuridão luminosa! A ausência de Deus era a luz da sua presença!
O que foi que provocou a mudança? A lembrança do Nome de Deus no fim do versículo 18 abriu a porta da memória e o autor começou a lembrar o passado vivido com Deus: “Guardo triste essa lembrança e me sinto abatido. Mas existe alguma coisa que eu recordo e me dá esperança: o amor de Yhwh não acaba jamais e sua compaixão não tem fim” (Lm 3,20-22). A palavra-chave é recordar. Re-cor-dar significa fazer passar tudo de novo [re] pelo coração [cor]. A lembrança quase casual do nome amado, fez acordar o antigo amor, e dentro dele tudo mudou. O povo descobriu que o cativeiro não era uma ruptura nem uma condenação, mas um puxão de orelha do Pai bondoso para o povo começar a criar juízo. Veja só estas frases tão bonitas, cheias de esperança e de carinho:
22 “O amor de Yhwh não acaba jamais e sua compaixão não tem fim.
23 Pelo contrário, renovam-se a cada manhã: “Como é grande a tua fidelidade!” 24 Digo a mim mesmo: “Yhwh é minha herança”, por isso nele espero. 25 Yhwh é bom para os que nele esperam e o procuram. 26 É bom esperar em silêncio a salvação de Yhwh” (Lm 3,22-26). |
Tudo isto acontece hoje também. O coronavírus derrubou tudo, fechou tudo, impediu os encontros. Cada um é jogado sobre si mesmo e, de repente, Deus acorda em nós, como dizia Santo Agostinho: “Tu nos fizeste para Ti, e o nosso coração estará irrequieto até que não descanse em Ti!”
2ª Janela: A nova leitura da natureza abre os olhos do povo
Naquele desespero generalizado do cativeiro sem luz, o profeta Jeremias, olhando pela janela da natureza, encontrou este outro motivo de esperança e dizia ao povo exilado:
“Assim diz Yhwh, aquele que estabelece o sol para iluminar o dia e ordena à lua e às estrelas para iluminarem a noite, aquele cujo nome é Yhwh dos exércitos: quando essas leis falharem diante de mim – oráculo de Yhwh – então o povo de Israel também deixará de ser diante de mim uma nação para sempre!” (Jr 31,35-36). “Se vocês puderem romper a minha aliança com o dia e com a noite, de modo que já não haverá mais dia nem noite no tempo certo, também será rompida a minha aliança com o meu servo Davi” (Jr33,20-21).
É como se Jeremias dissesse ao povo: Vocês dizem que Deus já não cuida de nós e que nós deixamos de ser o povo de Deus! Eu digo para vocês que Ele não nos abandonou. E sabem por quê? É que o sol vai nascer amanhã. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele não consegue impedir o nascimento do sol amanhã.
Com outras palavras, Jeremias ajudou o povo a ler a natureza com um novo olhar de fé. Era nos fenômenos da natureza que ele via um sinal da presença amiga de Deus e da sua fidelidade para com o povo: no sol que se levantava todos os dias sobre a cidade destruída; na sequência inalterada dos dias e das noites; na lua minguante e crescente; na alternância das estações do ano: primavera, verão, outono e inverno; nas chuvas, nas plantas e sementes, nas colheitas, etc. Tudo isto era para Jeremias um sinal da certeza de que Deus continuava fiel ao seu povo. Deus não havia rompido a sua aliança, como alguns andavam dizendo: “O Senhor me abandonou, o Senhor esqueceu-se de mim!” (Is 49,14). A natureza tornou-se o sinal mais seguro da presença amiga de Deus no meio do seu povo. A certeza do nascer do sol não depende do rei Nabucodonosor, nem dos poderes deste mundo, nem da nossa observância da lei, mas está impressa na lógica da criação. É pura gratuidade, expressão do bem-querer do Criador. É promessa que não falha. Nós podemos romper com Deus, mas Deus não rompe conosco. Cada manhã, através da sequência dos dias e das noites, ele nos fala ao coração: “Como é certo que eu criei o dia e a noite e estabeleci as leis do céu e da terra, também é certo que não rejeitarei a descendência de Jacó e de meu Servo Davi” (Jr 33,25-26). É a partir deste olhar sobre a natureza que vai nascer o texto de Gênesis sobre a criação do mundo (cf. Gn 1,1-2,3).
E hoje diante da ameaça do coronavírus, o que Jeremias diria para nós? Acho que diria o seguinte: “Vocês não sabem admirar os sinais de Deus na natureza. Vocês usam a natureza para tirar proveito. Vocês imitam os antigos reis de Israel e de Judá. Eles comercializaram a fé, e o Deus libertador do Êxodo virou empregado do dinheiro deles. De tanto usar a natureza para aumentar o lucro e a riqueza, vocês perverteram a ordem e criaram esse descompasso entre a vida e a natureza. O que Deus e a natureza pedem é que vocês mudem a sua maneira de olhar a natureza. Em vez de usarem a Natureza em seu próprio proveito, aprendam a admirá-la como revelação do rosto de Deus”.
3ª Janela: Redescobrir e experimentar o Amor eterno de Deus por nós
Foi nesta mesma situação escura sem horizonte do cativeiro, que os profetas desenterraram a raiz do amor fiel de Deus. Jeremias traz estas palavras de Deus. Ele diz: “De longe Yhwh me apareceu: Eu te amei com um amor eterno, por isso conservei para ti o amor” (Jr 31,3). E esta outra afirmação de Isaías: “Em um momento de cólera escondi de ti o meu rosto, mas logo me compadeci de ti, levado por um amor eterno, diz Yhwh, o teu redentor” (Is 54,8; cf. Is 41,8-14.). Foram os profetas, sobretudo Jeremias, Oséias e Isaías, que souberam redescobrir esta dimensão do amor infinito de Deus (cf. Is 41,8-14; 49,15; Jr 31,31-37; Os 2,16).
Nas entrelinhas destas frases, a gente adivinha a seguinte descoberta. É como se Deus dissesse ao povo: “Depois de tudo que você fez, você já não mereceria ser amado. Mas meu amor por você não depende do que você fez ou faz por mim ou contra mim. Quando comecei a amar você, eu o fiz com um amor eterno. Por isso, apesar de tudo que você me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de você. Mesmo você me matando, eu amo você para sempre. Jesus deu a prova deste amor eterno quando pediu que Deus perdoasse o soldado que o estava matando na cruz: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lc 23,34).
De fato, no cativeiro desapareceu tudo: o templo, os sacrifícios e os holocaustos, o altar, a liturgia, a posse da terra. Nada sobrou. Só sobrou a lembrança do amor de Deus e da sua misericórdia. A redescoberta da certeza do amor de Deus devolveu ao povo a autoestima, ajudou-o a superar o sentimento de culpa, a descobrir que o cativeiro não era uma ruptura da aliança da parte de Deus, mas sim um gesto do Pai amoroso que corrige seu filho. Agora eles sabem que nada, nem mesmo o fracasso, pode separá-los do amor de Deus (Is 40,1-2ª; 41,9-10.13-14; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16; 54,7-8; etc. cf. Rm 8,35-39).
E hoje, o que podemos e devemos fazer para redescobrir o amor eterno de Deus? Não basta a reflexão teórica sobre a realidade. É através de gestos simples e concretos de bondade e de acolhimento que abrimos a janela para que o amor de Deus possa se revelar. O amor desinteressado de tantos agentes de saúde que se doam pelos outros neste tempo da pandemia! É um exército de pais e mães de família, velhos e jovens, rapazes e moças, religiosos e leigos, homens e mulheres, crentes e ateus, todos humanos, muito humanas, como Jesus, querendo ajudar os outros. Pelo seu jeito de agir, sem dizer uma só palavra, eles nos pedem para não perder o amor à vida diante da morte de tantas pessoas, e para continuar a crer na vida porque amanhã o sol vai nascer de novo. E no Juízo Final, Jesus vai dizer a eles: “Venham vocês, abençoados por meu Pai, e recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo” (Mt 25,34). Muitos vão dizer: “A gente nem conhece o senhor!” E Jesus vai responder: “Todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos meus irmãos mais pequenos, foi a mim que o fizeram” (Mt 25,40).
4ª Janela: A nova imagem de Deus: Deus de família
Lá no cativeiro da Babilônia, os valores que antes faziam parte da vida do povo já não existiam: a posse da terra, o templo, as peregrinações, o culto, o sacrifício, o sacerdócio, a monarquia, o rei. Nada disse tinha sobrado. O único espaço de uma relativa autonomia e liberdade que ainda sobrava para o povo, lá no cativeiro, era a convivência familiar: o pai, a mãe, o marido, a esposa, um irmão ou irmã, o mundo pequeno e frágil da família, da “casa”.
Ora, foi neste espaço da “casa”, da família, da pequena comunidade, que renasceu a experiência de Deus. A imagem de Deus, transmitida pelos discípulos de Isaías, reflete este ambiente familiar da Casa. Deus é Pai (Is 63,16; 64,7), é Mãe (Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13), é Marido (Is 54,4-5; 62,5). Eis alguns textos:
* Deus é Pai: “Tu és o nosso pai, pois Abraão não nos reconhece mais e Israel não se lembra de nós. Yhwh, tu és o nosso pai. Teu nome é, desde sempre, Nosso Redentor” (Is 63,16; cf. Is 64,7).
* Deus é Mãe: “Sião dizia: “Yhwh me abandonou; o Senhor se esqueceu de mim”. Por acaso pode a mãe se esquecer da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti. Eis que te gravei nas palmas da minha mão, os teus muros estão continuamente diante de mim” (Is 49,14-16; cf. Is 66,13).
* Deus é Marido: “Porque o teu marido será o teu criador, Yhwh dos Exércitos é o seu nome. O Santo de Israel é o teu redentor, ele se chama o Deus de toda a terra. Como a uma esposa abandonada e acabrunhada, Yhwh te chamou; como à mulher da sua mocidade, que teria sido repudiada, diz o teu Deus. Por um pouco de tempo te abandonei, mas agora com grande compaixão torno a recolher-te. Em um momento de cólera escondi de ti o meu rosto, mas logo me compadeci de ti, levado por um amor eterno, diz Yhwh , o teu redentor” (Is 54,5-8). “Como um jovem desposa uma virgem, assim te desposará o teu edificador. Como a alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em ti” (Is 62,5).
Yhwh, o Deus que antes estava ligado ao Templo, ao culto oficial, ao sacerdócio, ao clero, à monarquia, agora está perto deles, “em casa”; casa pequena, quebrada e, humanamente falando, sem muito futuro, mas Casa, e não templo grandioso. Eles não insistiram nas imagens religiosas antigas, mas sim nas imagens tiradas da vida familiar e comunitária que eles estavam vivendo lá no cativeiro. Humanizaram a imagem de Deus e começaram a olhar a família, a pequena comunidade, como o espaço do reencontro com Deus. Deus agora se revela lá onde antes ninguém o procurava: em casa, no relacionamento familiar, nas pequenas comunidades do povo exilado no cativeiro!
Foi a partir do mundo pequeno e limitado da “casa”, sem prestígio e sem poder, que tudo renasceu. Foi assim que os primeiros cristãos recomeçaram, organizando-se em pequenas comunidades. Esta é ainda a renovação que acontece hoje na Igreja a partir das Comunidades Eclesiais de Base.
Hoje, por causa da pandemia, estamos todos isolados, confinados nas nossas casas, na pequena família: pai, mãe, filhos, avô e avó, algum parente ou tio. A missa já não pode ser celebrada nas igrejas cheias de gente, mas é irradiada para as casas, onde as famílias acompanham a celebração. Estamos voltando à situação de que Jesus falou: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio” (Mt 18,20). A pandemia nos faz voltar às origens tanto da família como da igreja. Que saibamos acolher este retorno obrigatório às nossas origens como um apelo de Deus para levar mais a sério nossa vida familiar, nossa vida em comunidade. Que a tragédia da pandemia possa fazer crescer em nós a mesma experiência da nova imagem de Deus que cresceu no povo de Deus durante o cativeiro da Babilônia: a imagem do Deus da família.
5ª Janela: Com a nova luz nos olhos nasce uma nova leitura do passado
A nova maneira de olhar a natureza, a redescoberta do amor eterno e o reencontro com Deus na “casa“, na família, deram olhos novos para entender, de maneira nova, tudo aquilo que Deus tinha feito com eles no passado e eles recomeçam a lembrar as histórias do seu passado, não para aumentar a saudade, mas para transformar a saudade em esperança: “Deus não nos abandonou. A caminhada continua! Estamos refazendo a história!”. Eles lembram a aliança de Deus com Noé (Is 54,8-9) e o chamado de Abraão e Sara (Is 51,1-2; 41,8): “Nós somos hoje Abraão e Sara!”. Lembram, sobretudo, o Êxodo: o fim da escravidão (Is 40,2); o caminho pelo deserto (Is 40,3); o cântico novo à beira do Mar Vermelho (Is 42,10); a travessia pela água (Is 43,2); a água que brota do chão seco (Is 44,3); a efusão do Espírito (Núm 11,17.25; Is 44,3); etc. “Estamos envolvidos num novo Êxodo, muito maior que o primeiro (Is 43,16-19). “Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas. Vejam que estou fazendo uma coisa nova: ela está brotando agora, e vocês não o percebem?” (Is 43,18-19). Eles começam a reler os valores que no passado haviam orientado o povo. Eles mantem as mesmas palavras, mas dão a elas um novo sentido e as colocam numa nova perspectiva. Eis alguns exemplos:
* O povo de Deus já não é uma raça: agora os estrangeiros também fazem parte (Is 56,3.6-7).
* O templo já não é só para os judeus: agora é casa de oração para todos os povos (Is 56,7).
* O culto é universal: os estrangeiros também participam (Is 56,6-7).
* O sacerdócio não é só de Levi: estrangeiros vão receber o mesmo sacerdócio (Is 66,20-21).
* O reino já não é a monarquia de Davi, mas sim o Reino do próprio Deus (Is 52,7; 43,15).
* O messias, (o ungido) não é só o rei Davi, mas também Ciro, o Rei dos persas (Is 45,1; 44,28).
* A eleição não é um privilégio, mas um serviço a ser prestado a toda a humanidade (Is 42,1-4).
* A missão não é o povo ser um grupo separado, mas sim ser a “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6)
* A lei de Deus não é só de Israel: todos os povos nela encontram uma luz (Is 2,1-5).
* Jerusalém não é a capital só de Judá, mas é o centro de romaria para todos os povos (Is 60,1-7).
Esta nova experiência de Deus, de um lado, ajudou-os a perceber os erros e enganos da ideologia do tempo dos reis; e de outro lado, foi fonte de criatividade para repensar, um por um, todos os valores do passado, libertá-los dos erros e das limitações, adaptá-los à nova situação. Foi um longo processo de séculos. A síntese final desta releitura, iniciada no cativeiro, é a própria Bíblia, o Antigo Testamento.
Como e o que fazer hoje para ter nos olhos a nova luz que gera uma nova leitura do passado? Podemos imitar o profeta Isaías. Para o pequeno grupo que estava no cativeiro ele lembrava que Abraão era um só e não desanimou, mas com a ajuda de Deus ele cresceu: “Quando o chamei, ele era um só; mas eu o abençoei e multipliquei” (Is 51,2). É como se dissesse: Nós somos Abraão, não podemos desanimar. Imitando Isaías, também nós podemos dizer: A história do Êxodo é a nossa história! A luta dos profetas é a nossa luta. Podemos imitar Jesus que soube elogiar a fé do soldado romano que era da religião do império (Mt 8,10), aprendeu com a mulher cananeia que era de outra raça e outra religião (Mt 15,28) e com a mulher samaritana que não se dava bem com os judeus (Jo 4,7-26). Cada um de nós conhece pessoas que não são de igreja, mas que observam melhor do que nós aquilo que Jesus pede, e elas podem ensinar-nos como seguir Jesus.
6ª Janela: Deus liberta, salva e conduz o seu povo com um poder criador
De todos os livros da Bíblia, os capítulos 40 a 66 do livro de Isaías são os que mais usam a palavra criar, em hebraico bará (arb). Os capítulos 40 a 66, começaram a nascer na época do cativeiro da Babilônia. O verbo criar (bará) indica a qualidade da ação com que Deus acompanha e cuida do seu povo. Não é uma ação qualquer. É ação criadora! Deus cria o universo e a terra; cria também o povo e o Êxodo (Is 43,15). Tudo é fruto da ação criadora de Deus. “Yhwh que te criou, é o mesmo que estendeu os céus e fundou a terra” (Is 51,13). Ele liberta, salva e conduz o povo com um poder criador (Is 40,25-31). Ação salvadora e ação criadora se identificam. O Deus que chama Abraão é o Deus Criador. O Deus que cria o mundo é o Deus que chama Abraão. Iluminação mútua entre Criação e Salvação! É a mesma ação.
A Lei de Deus entregue ao povo no Monte Sinai tinha no seu centro as Dez Palavras divinas da Aliança: são os Dez Mandamentos (Ex 20,1-17; Dt 5,6-22). Da mesma maneira, a descrição da Criação do Universo tem no seu centro Dez Palavras divinas. O autor que fez a redação final da narrativa da Criação (Gn 1,1-2,4ª) repete dez vezes a expressão “e Deus disse”, ~yhiªl{a rm,aYOæw. Como fez para o povo, assim Deus faz para as criaturas: “fixou-lhes uma lei que jamais passará” (Sl 148,6). Ao lado das Dez Palavras da Aliança, eles começam a dar atenção às Dez Palavras na origem das Criaturas. Ao lado da Lei da Aliança, descobrem a Lei da Criação.
Esta maneira de descrever a criação é bem mais que um simples jogo de palavras. As Dez Palavras da Criação são a expressão da nova maneira de olhar para a natureza. A admirável harmonia do universo é fruto da obediência das criaturas às Dez Palavras com que Deus enfrentou e venceu o caos. Diz o salmo: “O céu foi feito com a palavra de Javé, e seu exército com o sopro de sua boca. Ele represa num dique as águas do mar, coloca os oceanos em reservatórios. Que a terra inteira tema a Javé! Que o temam todos os habitantes do mundo! Porque ele diz e a coisa acontece, ele ordena e ela se afirma” (Sl 33(32),6-9).
1. Gn 1,3 E Deus disse: haja luz
2. Gn 1,6 E Deus disse: haja um firmamento 3. Gn 1,9 E Deus disse: que as águas se juntem e apareça o continente 4. Gn 1,11 E Deus disse: que a terra produza relva verde 5. Gn 1,14 E Deus disse: que haja luzeiros no firmamento 6. Gn 1,20 E Deus disse: que as águas fiquem cheias de seres vivos 7. Gn 1,24 E Deus disse: que a terra produza seres vivos 8. Gn 1,26 E Deus disse: façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança 9. Gn 1,28 E Deus disse: sejam fecundos 10. Gn 1,29 E Deus disse: dou as ervas como alimento. |
E Deus
Disse
rm,aYOæw: ~yhiªl{a |
O caos do cativeiro surgiu porque o povo não observou as Dez Palavras da Lei da Aliança. As criaturas, porém, ao contrário do povo, observam a Lei da Criação. Por isso existe a harmonia no universo. No Pai-Nosso Jesus pede que cheguemos a observar os Dez Mandamentos com a mesma perfeição com que o sol e as estrelas do céu observam a Lei da Criação: “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”. Na harmonia do universo descobrimos como realizar nossa missão. O Decálogo da Criação descreve a ação amorosa de Deus em nosso favor. O Decálogo da Aliança descreve como deve ser a resposta amorosa do ser humano a Deus.
7ª Janela: Os Dois Livros de Deus: Natureza e Bíblia, uma nova síntese
1º LIVRO: a natureza
O primeiro livro de Deus não é a Bíblia, mas sim a natureza, o universo, a vida, o mundo, os fatos, a história. É através do Livro da Natureza ou da Vida que Deus quer falar conosco. Deus criou as coisas falando. Ele disse: “Luz!” E a Luz começou a existir (Gn 1,3). Tudo que existe é a expressão de uma palavra divina:
“O céu manifesta a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos.
O dia passa a mensagem para outro dia, a noite a sussurra para a outra noite.
Sem fala e sem palavras, sem que a sua voz seja ouvida,
a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua linguagem” (Sl 19,2-5).
Cada ser humano é uma palavra ambulante de Deus (Gn 1,27). As crianças são palavra de Deus para os pais; os pais são palavra de Deus para as crianças. Mas nós já não nos damos conta de que estamos vivendo no meio do livro de Deus e que cada um de nós é uma página viva deste livro divino. Há algo que nos impede de reconhecer a presença da Palavra na vida, algo que “sufoca a verdade” (Rom 1,18; cf Is 44,20; Sl 36,3). O que é que nos impede?
Santo Agostinho diz que foi o pecado, isto é, esta nossa mania de querer dominar tudo, de tratar a natureza como mercadoria e de achar que somos donos de tudo. Este é o pecado que “sufoca a verdade”. Por isso, já não conseguimos descobrir a fala de Deus no Livro da Vida. Perdemos o olhar da contemplação, a capacidade de admirar. Para remediar este nosso mal nasceu a Bíblia, o Segundo Livro de Deus. Nasceu de uma lenta redescoberta de que Deus está conosco.
2º LIVRO: a Bíblia
A Bíblia foi escrita, não para substituir o Livro da Vida, mas para ajudar-nos a redescobrir na vida os sinais da presença de Deus. A leitura orante da bíblia nos devolve o olhar da contemplação, ajuda a decifrar o mundo e faz com que o Universo volte a ser o que deve ser “O Primeiro Livro de Deus”.
A bíblia é o fruto da ação do Espírito de Deus e de um demorado processo de busca do ser humano. Impelido pelo desejo de encontrar Deus nas crises e rupturas da história, o povo foi descobrindo os sinais da presença divina e, dentro dos critérios da cultura daquela época, transmitia para os filhos as suas descobertas. Assim foi nascendo a Tradição Viva do Povo de Deus, transmitida oralmente de geração em geração, desde os tempos de Abraão e Sara.
Como entender esta lenta formação da Bíblia ao longo dos séculos, desde a chamada de Abraão no século XIX antes de Cristo até a redação final do último livro do Novo Testamento em torno do ano 100 depois de Cristo? Um fato de hoje ajuda a entendê-la. Numa favela no Rio de Janeiro, o menino de dona Isabel ficou doente. No posto de saúde receitaram um remédio. Isabel foi na farmácia. O remédio custava 48 reais. Ela não tinha o dinheiro. Naquele mesmo dia, de volta em casa, recebeu a visita de uma senhora. Conversaram muito. Isabel não falou do menino, nem do remédio. Na saída, aquela senhora deixou um pequeno embrulho em cima da mesa. Isabel pegou o embrulho, abriu e lá dentro havia 48 reais! Ela disse: “Foi Deus! Não foi?”
Junto com Sara, acompanhando Taré, seu pai, Abraão saiu de Ur dos Caldeus em direção a Haran (Gn 11,31. A peregrinação da família de Abraão fazia parte do grande movimento migratório de tribos que já vinha desde o século XX antes de Cristo, desde Ur dos Caldeus, via Haran, através da Palestina até no Egito. Movidos pela sua fé em Deus, Abraão e Sara com toda a sua família saíram da sua terra em busca de melhores condições de vida: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, vai para a terra que te mostrarei” (Gn 12,1). Abraão deve ter dito a Sara: “Foi Deus! Não foi?”. E Sara confirmou: “Foi Deus sim!” E assim começou a tradição oral. A longa história de Deus-está-conosco!
Foi na comunidade do cativeiro da Babilônia no século VI aC, a partir da redescoberta do amor de Deus, que, aos poucos, começou a ser articulada a redação final desta tradição oral do povo de Deus, que tinha começado com Abraão e Sara no século XIX a.C., em torno de mais de 1500 anos atrás. A Bíblia escrita é o resultado da leitura que o povo hebreu conseguiu fazer da vida e da natureza para descobrir nelas a fala amorosa de Deus. Este Segundo Livro de Deus ajudou o povo a entender melhor o Primeiro Livro de Deus.
8ª Janela: A Missão do Povo de Deus: servir, ajudar, socorrer, salvar
Foi no ambiente do cativeiro da Babilônia, que o povo, ajudado pelos discípulos de Isaías, fez a revisão do seu passado e descobriu os erros cometidos. Sofrendo as aflições da escravidão, eles descobriram que sua missão como Povo de Deus não era ser um povo glorioso, colocado acima dos outros povos, mas sim ser um povo servidor, cuja missão é revelar o amor de Deus, irradiar a sua bondade, difundir a justiça e, assim, ser a “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6). Os quatro cânticos do Servo falam desta missão e ensinam como o povo deve entender e realizar a sua missão. São uma espécie de cartilha que descreve os quatro passos da missão: O primeiro cântico (Is 42,1-9) descreve como Deus escolhe e apresenta ao mundo o povo oprimido para ser o seu Servo. O segundo cântico (Is 49,1-6) mostra como este povo, ainda sem fé em si mesmo, vai descobrindo com dificuldade a sua missão. O terceiro (Is 50,4-9) relata como o povo assume a sua missão e a executa, apesar da perseguição. E o quarto cântico (Is 52,13 a 53,12) é uma profecia a respeito do futuro do Servo e da sua missão: ele vai ser morto, mas a sua morte será fonte de vida e de salvação para todos.
Um breve resumo dos quatro cânticos define a missão do Servo (Is 61,1-2). Foi este resumo que Jesus escolheu para se apresentar com a sua missão na comunidade de Nazaré (Lc 4,18). Jesus percorreu os quatro passos, do começo até o fim. Por isso, ele se tornou a chave principal para que possamos entender todo o significado e alcance da missão do Servo, descrita no livro de Isaías.
Em Jesus, a profecia do Servo de Deus retomou forma e vigor. Ele disse: “Eu não vim para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mt 20,28). Aprendeu de sua Mãe que disse: “Eis aqui a serva do Senhor!” (Lc 1,38). Ela o aprendeu da tradição dos Anawim (pobres). Os pobres entenderam: estamos no mundo como povo de Deus não para dominar, mas para servir. Eles esperavam o Messias Servidor. Foi assim que o entenderam os primeiros cristãos. Jesus era visto por eles como o Servo de Deus (cf. At 3,13.26; 4,27.30). Ser servo de Deus era o título com que eles se identificavam a si mesmos: Paulo (Rm 1,1; Tt 1,1; Fl 1,1), Pedro (2Pd 1,1). Tiago (Tg 1,1): “servos da justiça” (Rm 6,18), “servos de Deus” (Rm 6,22).
9ª Janela: A nova Convivência: ternura, diálogo, reunião e consciência crítica
A descoberta da gratuidade da presença de Deus tornou-se a fonte de uma nova maneira de conviver em comunidade, que transparece nos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías. Eis alguns aspectos desta nova convivência:
* Ternura
Para uma pessoa que vive machucada e triste na solidão do cativeiro, não basta você gritar para ela levantar a cabeça e ter esperança; não basta usar os argumentos da análise crítica da realidade para ela começar a enxergar a situação com esperança renovada. É necessário, antes de tudo, cuidar das feridas do coração, consolar a pessoa, acolhê-la com muita ternura. De fato, as primeiras palavras do livro dos discípulos de Isaías são: “Consolem, consolem o meu povo!” (Is 40,1). E elas ressoam pelas páginas do livro inteiro, do começo ao fim.
Os discípulos de Isaías têm uma conversa atenciosa, cheia de ternura. “Não gritam nem apagam a vela que ainda solta um pouco de fumaça” (Is 42,2-3). Eles mesmos machucados, não machucam; oprimidos, não oprimem. Usam linguagem simples e direta, cheia de bondade que funciona como bálsamo, e dispõe as pessoas a olharem a realidade com mais objetividade. Há muitas expressões de ternura nos capítulos 40 a 66 de Isaías. Eis um exemplo: “Tu és o meu servo! Eu te escolhi, não te rejeitei. Não temas, porque eu estou contigo. Não fique apavorado, pois eu sou o teu Deus. Eu te fortaleço, sim, eu te ajudo, eu te sustento com a minha direita justiceira! (Is 41,9-10). “Não temas! Sou eu que te ajudo! Não temas, vermezinho de Jacó, meu bichinho de Israel! Eu mesmo te ajudarei. Oráculo de Yhwh, teu redentor é o Santo de Israel!” (Is 41,13-14). Veja estes outros textos: Is 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16; 54,7-8; etc.
* Diálogo
Nos capítulos 40 a 66 de Isaías, transparece uma atitude de escuta e diálogo. Os discípulos de Isaías conversam, fazem perguntas, questionam, levam o povo a refletir sobre os fatos (cf. Is 40,12-14.21.25-27; etc.). Ensinam dialogando em pé de igualdade com o povo. Este jeito de ensinar é próprio de quem se considera discípulo e não dono da verdade: “O Senhor me deu uma língua de discípulo para que eu saiba trazer ao cansado uma palavra de conforto. De manhã em manhã ele me desperta, sim, desperta meu ouvido, para que eu ouça como os discípulos” (Is 50,4).
Um discípulo não impõe suas ideias, mas sabe ensinar escutando, aprendendo dos outros. Eis um exemplo de como faziam: “Por que dizes tu, Jacó, e por que afirmas tu, Israel: “O meu caminho está oculto a Yhwh; meu direito passa despercebido a Deus?” Então não sabes? Por acaso não ouviste isto? Yhwh é um Deus eterno, criador das regiões mais remotas da terra. Ele não se cansa nem se fatiga, sua inteligência é insondável” (Is 40,27-28).
Por este seu jeito de conviver e de tratar com o povo, os discípulos de Isaías não só falam sobre Deus, mas também o revelam. Eles comunicam algo daquilo que eles mesmos vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura e de diálogo. O povo percebe que o Deus dos discípulos é diferente do deus da Babilônia, diferente também da imagem de Deus da época da monarquia, que eles ainda carregavam na memória. Assim, aos poucos, o povo começa a perceber algo do novo que estava acontecendo. “Não estão vendo?”(Is 43,19).
Até hoje, estes primeiros passos de ternura e de diálogo são os mais difíceis, os mais lentos e os mais importantes. Foi necessária muita paciência, para que aquele povo exilado no cativeiro se reanimasse a crer novamente em si mesmo e em Deus, e se levantasse (cf. Is 49,4.14). O desânimo era muito grande. Eles eram como o profeta Elias deitado debaixo da árvore querendo morrer: “Basta, Senhor! Tira-me a vida, porque não sou melhor que meus pais” (1Rs 19,4). Até para cantar eles tinham perdido o gosto (Sl 137(136),1-6).
* Consciência crítica
Este desânimo tinha duas causas, ligadas entre si como os dois braços de uma balança: uma externa que, de fora, pesava sobre eles, a saber: a destruição de Jerusalém, o exílio, a perda de todos os apoios e direitos; a outra interna que, por dentro, esvaziava o coração: a falta de visão e de fé, o peso morto da antiga visão de Deus. Deus parecia ter perdido o controle da situação e Nabucodonosor, o rei da Babilônia, e Ciro, o rei da Pérsia, pareciam ser os donos do mundo. Desequilibrou-se a balança da vida!
Os discípulos de Isaías atacam as duas causas: desfazem o peso da opressão e enchem o vazio do coração. Para desfazer o peso da opressão eles usavam o bom senso e faziam uma análise crítica da realidade. Desmascaravam o poder opressor e a ideologia dominante que os enganava. Tudo era analisado e criticado com ironia e precisão, e confrontado com a nova visão que a fé em Deus lhes comunicava. A respeito das nações que os oprimiam eles diziam ao povo: “Vejam: as nações são como gotas num balde, e não valem mais que poeira num prato da balança. Vejam: as ilhas pesam como um grão de areia” (Is 40,15; cf. Is 40,17.22.23; 41,6-7.21-29; 44,18-20.25; 47,1-15).
Para encher o vazio do coração os discípulos ajudavam o povo a ler de maneira nova o mundo que os envolvia e a perceber nele os sinais da presença amorosa de Yhwh: “Por um pouco de tempo te abandonei, mas agora com grande compaixão torno a recolher-te. Em um momento de cólera escondi de ti o meu rosto, mas logo me compadeci de ti, levado por um amor eterno, diz Yhwh, o teu redentor” (Is 54,7-8; cf. Is 55,8-11; 41,1-5; 44,27-28; 45,1-7). Assim, eles iam descobrindo que a casa preferida de Deus era no meio do seu povo oprimido e exilado. Deus fez opção pelos pobres: “Eu estou contigo!” (Is 41,10). “Troco tudo por ti!” (Is 43,4). É lá, no povo do cativeiro, que Ele, Deus, deve ser procurado: “Procurem Javé enquanto ele se deixa encontrar; chamem por ele enquanto está perto” (Is 55,6). É lá no cativeiro que o povo deve ser “Luz das Nações” (Is 42,6).
Assim, enchendo o vazio do coração (causa interna) e enfraquecendo o peso da opressão (causa externa), eles deslocavam o peso da balança. O povo se equilibrava de novo na vida. Agora, já não era a perseguição que enfraquecia a fé, mas era a fé renovada e esclarecida que enfraquecia o poder dos poderosos. A face de Deus reaparecia na vida. O povo, reanimado por esta Boa Notícia, despertava (Is 51,9.17; 52,1), se punha de pé (Is 60,1), começou a cantar (Is 42,10; 49,13; 54,1; 61,10; 63,7) e a resistir (Is 48,20).
* Reunião
É neste mesmo período do cativeiro que eles começaram a insistir de novo na observância da lei já antiga do sábado (Is 56,2.4; 58,13-14; 66,23; cf. Gn 2,2-3). Era para que o povo tivesse ao menos um dia por semana para se encontrar, partilhar sua fé, louvar a Deus e animar-se uns aos outros. Faziam reunião de noite e perguntavam: “Elevai os olhos para o alto e vede: Quem criou estes astros? É ele que faz sair o seu exército em número certo e fixo; a todos chama pelo nome. Tal é o seu vigor, tão grande a sua força que nenhum deles deixa de apresentar-se. Por que dizes tu, Jacó, e por que afirmas, Israel: “O meu caminho está oculto a Yhwh; o meu direito passa despercebido a Deus?” (Is 40,26-27)
Nestas reuniões eles refrescavam a memória (Is 43,26; 46,9), contavam as histórias de Noé, de Abraão e Sara, da Criação, lembravam o êxodo (Is 43,16-17), apontavam os fatos da política e perguntavam: “Quem é que faz tudo isto?” (Is 41,2). A resposta era sempre a mesma: “É Yhwh, o Deus do povo, o nosso Deus!”. Assim, a natureza deixava de ser o santuário dos falsos deuses; a história já não era mais decidida pelos opressores do povo; o mundo da política já não era mais o domínio de Nabucodonosor. Por trás de tudo começam a reaparecer os traços do rosto de Yhwh, o Deus do povo. A natureza, a história e a política deixam de ser estranhas e hostis ao povo e tornam-se aliadas dos pobres na sua caminhada como Servo de Deus.
10ª Janela: Uma nova celebração da vida: a lição dos salmos
O livro dos Salmos nasceu ao longo dos séculos. Sua redação final foi feita depois do cativeiro, em torno dos séculos V ou IV a.C. É só uma parte das orações do povo que está no Livro dos Salmos. A outra parte, bem maior, está espalhada pela Bíblia inteira, tanto no AT como no NT. Os Salmos são o lado orante da história do povo de Deus. Neles há de tudo: Lei, História, Sabedoria, Profecia. Eles revelam o olhar contemplativo e orante do povo sobre a Criação de Deus.
Temos que recuperar a criatividade e a capacidade de admirar. Nesse ponto, o povo da Bíblia dá lição em todos nós. Apesar de todas as suas limitações, eles souberam ler o Livro da vida. Souberam descobrir e cantar a beleza do Universo que revela o amor de Deus e a grandeza do Criador. Souberam verbalizar e transmitir suas descobertas, enriquecendo as gerações seguintes.
Quando um artista tem uma inspiração, ele procura expressá-la numa obra de arte. A obra que daí resulta carrega dentro de si essa mesma inspiração. Por isso, as obras de arte atraem e mexem tanto com as pessoas. O mesmo acontece quando rezamos os salmos. A inspiração que conduziu os salmistas a comporem seus salmos, continua presente naquelas orações antigas. Através da leitura orante esse mesmo Espírito entra em ação e começa a atuar para suscitar em nós a mesma imagem de Deus expressa no salmo. Eis como exemplo, a imagem de Deus em alguns salmos:
Salmo 8: “A Tua presença irrompe por toda a terra!” / Deus se revela na natureza
Salmo 19(18): “Os céus cantam a glória de Deus!” / Eles são expressão da Lei de Deus
Salmo 46(45): “Deus é nosso refúgio e nossa força!” / Ele está conosco! Não ter medo
Salmo 104(103): “Envia teu Espírito e tudo será criado!” / A ordem da Criação vem de Deus
Salmo 136(135): “Criou o céu e a terra! Eterno é seu amor!” / Tudo é revelação do amor
Salmo 139(138): “Tu me conheces quando estou sentado!” / O Criador está presente em tudo
Salmo 148: “Aleluia! Louvai a Yhwh todas as criaturas!” / Convite ao louvor universal
Estes salmos nos dão uma ideia do que significava para aquele povo do cativeiro da Babilônia a fé no poder criador de Deus. Quando cantam a criação do universo e falam do Deus Criador, não é para dar informações sobre como Deus tinha criado o mundo no passado, mas sim para comunicar quem era o Deus que estava com eles lá no cativeiro, no mais fundo do fundo do poço, naquela escuridão sem luz, naquele desânimo sem futuro, e qual o poder criador que ele usava para acompanhar o seu povo! A redescoberta surpreendente da presença criadora da palavra de Deus naquela vida oprimida do cativeiro desumano, sem rumo e sem sentido, foi como a ressurreição do povo que iluminou a vida e a própria natureza! Humanizou a Vida!
Frei Carlos Mesters, O.Carm.
LEIA NESTA QUINTA-FEIRA, 25 DE JUNHO, O TERCEIRO E ÚLTIMO CAPÍTULO: A BOA NOVA DO REINO DE DEUS
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