Sempre a mesma discussão e a mesma tentação: quem é o maior? quem é o primeiro? quem é aquele que manda?… O Evangelho de hoje nos situa em Cafarnaum, lugar onde são “desvelados” dois dinamismos opostos. De um lado, Cafarnaum como lugar onde o poder se torna competição e intriga, onde o seguimento se torna privilégio, onde palavras como serviço, entrega ou humildade soam vazias porque por de-trás delas há outras intenções menos evangélicas. E é tão difícil sair daí. É tão complicado deixar que a criança ocupe o centro, que os últimos sejam os primeiros. O impulso do poder e da vaidade vão se impondo a tal ponto que acabamos sufocando a criança que quer se expressar e deixar-se surpreender dentro de nós.
De outro lado, Cafarnaum é essa criança que é Boa Nova, que nos abre às alegrias e às surpresas, que crê no amor, que reconhece sua ignorância e não se importa porque para ela sempre são novas todas as coisas, que em cada amanhecer descobre novas oportunidades, que não entende os grandes porque sabe que o essencial está em outro nível, que pede porque se reconhece necessitada, que é vulnerável e não se envergonha de suplicar o cuidado, que vive em meio a sonhos, que espera nas promessas…
Cafarnaum de crianças sempre últimas. Cafarnaum bendita e generosa. Cafarnaum possível.
Qual das duas “cafarnaum” eu alimento?
Diante da oculta intenção dos discípulos de começar a construir uma nova comunidade sobre as bases do poder, a partir do maior e do primeiro, Jesus inverte esse modelo, pois Ele não precisa de seguidores que sejam os grandes nem os primeiros, mas de companheiros que queiram fazer-se últimos e servidores dos outros; Jesus destrói os desejos de poder dentro de seu grupo, e assim apresenta com realismo o que implica segui-lo no caminho do Reino.
Mais uma vez o Evangelista Marcos nos situa Jesus “em casa”, lugar de reunião da comunidade, onde Ele estabelece um diálogo com os Doze. O paradoxo é brutal: pelo caminho, enquanto seguiam a Jesus, iam discutindo para ver “quem era o maior entre eles”. Os Doze tinham interiorizado os critérios da velha sociedade, edificada a partir dos poderosos.
E Jesus, ao descobrir a má intensão dos discípulos, corta o mal pela raiz: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos”. Depois, coloca uma criança no meio deles e a abraça. O gesto de Jesus e as palavras que o acompanham tornam-se chocantes e surpreendentes. O lugar central já não corresponde nem a Pedro nem a João nem a Tiago; no espaço central da Igreja, abraçada a Jesus, encontramos uma criança, ou seja, um ser humano que depende da acolhida e ajuda dos outros, um necessitado que nem sequer pertence ao grupo.
A comunidade de Jesus tem que ser servidora e acolhedora daqueles que são como aquela criança, dos desvalidos e dos que não contam. Quando numa comunidade surgem disputas pelo poder e pelos primeiros lugares, inevitavelmente nascem as divisões e se rompe a fraternidade
“Entrar no Reino” significa entender e compartilhar o projeto de Jesus, ou seja a “fraternidade universal” e o “amor que se faz serviço”, pois Ele veio “buscar” os últimos (enfermos, excluídos, pecadores).
Isso se revela impossível para quem rege sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição… alimentando atitudes que separam, dividem ou geram competição. O poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando a criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Sorrateiramente esta tentação toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a expansão da vida em direção aos outros. Por isso Jesus quer que seus servidores saibam se colocar no final, para, a partir dali, acompanhar e ajudar os outros (especialmente os perdedores deste mundo), superando a lógica do mando e do poder.
Todos se encontram agora igualados, formando um corpo em torno à criança (que está no meio), a quem devem receber e servir. No lugar onde estava Ele, Jesus colocou uma criança (não um templo, nem uma bíblia, nem o código canônico…), de quem todos devem se aproximar, acolher e servir.
Jesus coloca uma criança no centro para que ali fique; os discípulos discutiam sobre esse centro, mas agora descobrem que está ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de pé, convertendo-a em hierarquia máxima, em meio ao grupo onde Ele mesmo estava. Dessa forma, Jesus interpreta a autoridade a partir da ternura: a criança é importante porque está no centro da comunidade. Por isso, uma sociedade que não cuida e não protege suas crianças, é uma sociedade fracassada e não pode ser abençoada por Deus. Para muitos, é mais fácil confiná-las na prisão, lavando covardemente as mãos, “descartando-as” e não se preocupando em oferecer-lhes as mínimas condições para o seu crescimento e formação.
Com seu gesto e palavra, Jesus declara as crianças como coração e autoridade suprema da Igreja. Dessa forma, o que começava sendo uma pergunta hierárquica sobre o poder, entendido como sinal de Deus sobre o mundo (quem é o maior?), desemboca numa exigência ética de inversão do poder, de anti-hierarquia. A comunidade cristã não é um grupo de sábios doutores, uma sociedade de poderosos e influentes, uma associação de burocratas sacros, mas um lar para as crianças, um espaço onde os mais necessitados encontram acolhida e cuidado, um espaço de vida, dignidade e ternura.
A essência da Igreja consiste em abrir espaço de vida e crescimento, de afeto e ternura para com os mais necessitados, e de um modo especial para com as crianças. Eles, Jesus e a criança, constituem a verdade messiânica. Desaparecem os modelos de domínio (ser maior, ser primeiro), o maior e primeiro é a criança. A partir daí se pode falar de uma Igreja entendida como espaço de acolhida e como escola de vida para os necessitados e crianças. Aqueles que acolhem uma criança, oferecendo-a espaço para o abraço no centro da casa, esses são comunidade cristã.
Pe. Adroaldo Palaoro sj,
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
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