Parece uma audácia falar sobre a caridade em nossa vida, depois da primeira Carta-Encíclica de nosso querido Papa Bento XVI sobre este tema. Mas vou abordar a caridade do ponto de vista existencial, partindo da fundamentação bíblica, para situá-la na experiência do nosso dia-a-dia.
Começo por nos colocar na cena do Lava-Pés, apresentada no Evangelho de São João (Jo 13,11-17). Para lavar os pés de alguém é preciso ter muita humildade e caridade. O Senhor do céu e da terra, o Divino Mestre feito homem no-lo ensina, manifestando uma caridade incomensurável, infinita, ao lavar os pés de seus discípulos.
Por outro lado, é preciso que as pessoas necessitadas de purificação também tenham a humildade de se deixarem lavar os pés. Pedro, a princípio, não aceitou. Mas recebeu de Jesus uma advertência, cuja força, ainda hoje, não compreendemos plenamente: “Se eu não te lavar os pés, não terás parte comigo” (Jo 13,8). Significa – em primeira linha – que não pode ser seu discípulo, quem não vive a recíproca da humildade no serviço: deixar que outros também lavem os seus pés, quando for necessário. Quem não serve, nem se deixa servir, não está apto para o Reino dos Céus.
Temos “diante dos olhos” a figura de Jesus, o manto deposto e os rins revestidos de uma toalha, ajoelhado diante dos discípulos, a lavar-lhes os pés. Vem-nos à memória a expressão do falecido Santo Padre João Paulo II sobre a caridade, que deve ser cheia de “fantasia”, isto é, verdadeiramente prática, criativa, imaginosa… Se a nossa fé for conseqüente, vamos chegar à caridade. Por outro lado, onde não há caridade, também não há fé.
Esta é a lógica da vida espiritual, que podemos perceber, já a partir da própria oração. Se não conseguimos rezar, ou não rezamos bem, é porque a nossa fé vai mal e, quando isto acontece, é porque a nossa caridade tampouco vai bem. Às vezes, a caridade não se aprofunda, porque as razões que levam a praticá-la não são suficientemente fundamentadas. Olha-se a caridade apenas como dar esmola, por exemplo. Mas não! A caridade é uma atitude de vida, uma postura do cristão, que pratica realmente a sua fé, e sabe haurir dela os ditames morais que lhe servem de orientação.
Estas motivações são essenciais. Entretanto, tornam-se impossíveis de atingir, quando não se dá espaço para a ação do Espírito Santo, pois a caridade, infundida em nós, é a mesma Presença de união entre o Pai e o Filho, no seio da Trindade.
Muitas razões nos levam à caridade, a começar pela certeza de que Deus nos amou primeiro (cf. 1Jo 4,19). E como prova desse amor nos deu a vida, com toda a riqueza que ela encerra. Depois, enviou-nos seu Filho, ainda mais, entregou-o a nós, para mostrar-nos o caminho da verdadeira caridade. O Pai não poupou o Filho, de tal forma que Jesus chegou até o extremo de doação da sua vida, por amor ao Pai e a cada pessoa, qualquer indivíduo, todos, enfim (cf. Rm 8,32).
Outra razão, mais de ordem teológica, é que nós fomos feitos à imagem e semelhança de Deus. São João nos diz, por duas vezes, em sua primeira Carta, que “Deus é caridade” (Jo 4,8.16). Se fomos feitos à imagem de Deus, fomos feitos à imagem da caridade. Isto quer dizer que trazemos em nós a exigência ontológica, isto é, essencial, na maneira própria de sermos gente, que é viver a caridade.
Quem não tem caridade, desfigura a sua própria natureza, opta por uma vida irracional, para não dizer animalesca. É o que acontece com os atos de violência, as agressões, as guerras: são gestos desnaturados, que não condizem com a nossa dignidade humana. E sobre isto há que pensar muito seriamente. A imagem de Deus em nós aflora cada vez mais bela, na proporção em que se intensifica a nossa vida de caridade.
Além disso, se tanto você quanto eu fomos feitos à imagem da caridade divina, somos par + entes, encontramo-nos no mesmo caminho de volta para Deus. Portanto, ao ofender o meu próximo, eu pisoteio a própria imagem do Criador, que ambos compartilhamos. Esta questão é vital, existencial, e pode, até mesmo, servir de parâmetro para avaliarmos nossa vivência da caridade: quanto mais somos dedicados a praticá-la, mais nossa vida se enche de paz, de serenidade e de alegria. Ela se enquadra em cheio no plano eterno de Deus sobre nós.
Entretanto, a caridade não nos é conatural. Ela precisa ser desenvolvida, justamente no embate com os caracteres difíceis daqueles que fazem parte do nosso círculo de relações, exigindo coragem, e até mesmo heroísmo, em determinados momentos. Os santos e santas praticaram essa virtude de forma extraordinária, num exercício constante, habitual, que a tornava gradativamente menos penosa. Eles nos deixaram o exemplo, que somos todos chamados a seguir.
Por outro lado, há ocasiões em que temos a desgraça de prejudicar o próximo, às vezes em questões graves. Como se vai reparar um mal destes, que também ofende a Deus? Trata-se de um desvio peculiar. Nunca podemos atingir Deus diretamente, mas apenas mediatamente, através do próximo. Por isso, se ofendi a Deus, na pessoa do outro, é também através dele que reparo este mal. É no amor que temos às outras pessoas, que mostramos nosso amor a Deus. “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). Este é o único caminho para a santidade.
Pensemos bem: no único Filho, nosso Irmão e Salvador, fomos adotados pelo mesmo Pai. Temos a mesma Mãe, a Igreja e Maria Santíssima. Por ser Mãe de Jesus, Maria nos adotou, no alto da cruz, onde fomos adquiridos pelo sangue derramado de seu Filho. Professamos a mesma fé, vivida no seio da Mãe Igreja, a própria comunidade da caridade, que nos sustenta, nos alimenta e nos instrui. Somos, portanto, irmãos e irmãs. Tudo isso nos deveria irmanar de tal forma, que a caridade se tornasse algo de normal, até óbvio, na nossa vida. Para isso, contudo, contamos com a graça divina.
Peçamos a Deus, que é a Caridade substancial, essencial, nos faça entrar em comunhão com Ele, plenificando-nos desta virtude, que procede de seu Espírito. Superando nosso egoísmo, possamos ter a caridade do bom samaritano, que saiu de sua rotina, abandonou seus preconceitos, para ajudar o próximo que dele necessitava (cf. Lc 10,30-37).
“Vai e faze tu o mesmo”.
Autor: Cardeal D. Eusébio Oscar Scheid
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